O contexto social é a Era Vitoriana, uma das épocas mais conservadoras e fechadas para a descoberta da sexualidade.
Por sorte Bella Baxter (interpretada pela atriz Emma Stone) teve o cérebro trocado e pôde se despir da socialização doentia imposta na sua vida anterior, que fez com que ela quisesse se matar. Já nós, pessoas lidas socialmente como mulheres, não temos essa mesma sorte de ter uma segunda chance e precisamos lutar em vida para ter condições básicas de autonomia e sobrevivência.
Durante sua ressocialização não condicionada, Bella descobre como dar prazer a si mesma e fica fascinada com essa possibilidade. Apesar de voltarem a dizer, nesse novo contexto, que “não deve por a mão ali”, ela já não percebe aquilo como errado e ignora completamente essa repressão, indo atrás da sua curiosidade, do seu impulso de vida.
Quanto mais Bella se permite, mais espaços de autonomia ela vai abrindo, não permitindo que exerçam controle ou chantagens emocionais sobre ela.
Para mim o filme soou como uma metáfora perfeita de como a monogamia foi construída e constituída socialmente. O homem que se diz libertino e muito livre sexualmente, com muitas mulheres, mas que quando se depara com uma mulher realmente dona de si, não suporta conviver com essa verdade.
Bella começa a contar abertamente sobre suas experiências e sobre o “brincar” com outros homens, fora das quatro paredes em que se encontrava com o advogado Duncan Wedderburn (interpretado pelo ator Mark Ruffalo), de uma forma muito natural. Ele por sua vez fica muito perplexo com toda aquela naturalidade de Bella e começa a tentar isolá-la, prendê-la a qualquer custo, levando-a para um barco, para estar cercada de água e não poder sair.
Entretanto, mesmo no barco, ela conhece outras pessoas que facilitam o seu caminho de autodescoberta e descoberta do mundo que a rodeia.
O advogado tenta “domá-la” a qualquer custo, até no jeito livre dela dançar. A masculinidade tóxica (para saber mais sobre este tema, clica aqui e assista o documentário “O silêncio dos homens”) também é exposta no filme, à medida em que ele começa a perder a cabeça e a bater em qualquer homem que demonstra interesse por Bella. É lindo como ela aborda tudo isso com muita naturalidade, dizendo dos homens que estão olhando pra ela e que ela também está olhando para eles.
Mais adiante na história eles chegam em Paris sem dinheiro e Bella vai procurar trabalho num bordel, sem saber do que se tratava. Ela começa a perceber como se sente naquela situação. No início até parecia ser uma ideia atrativa, fazer sexo com vários homens diferentes, tendo a experimentação que ela queria ter e ainda ganhando dinheiro por isso. Depois ela começa a se sentir vazia, percebe que a sua empatia vai diminuindo, mesmo encontrando formas criativas de estarem com os homens que estavam ali só para usá-la por alguns minutos, a tratando como um objeto.
A estrutura monogâmica é retratada de uma forma muito explícita no filme, escancarando os papéis sociais de género e como cada um deles é reforçado em relação ao exercício da sexualidade. Enquanto homens podem fazer sexo com as mulheres que quiser, sem ter que dar nenhuma satisfação a ninguém, as mulheres não podem nem se masturbarem sem serem julgadas. Se são mulheres “sérias” precisam logo casar e serem fiéis aos seus maridos. Entretanto, se gostam de sexo e querem experimentar a vida, são putas e não merecem respeito.
As chantagens emocionais, o querer prender em casa ou num casamento, o querer retirar o prazer da mulher, seja no autoprazer, seja na mutilação genital sugerida. Até mesmo o feminicídio, tratado como algo muito natural, caso a mulher não queira fazer algo que o homem deseja, em relações heterossexuais. Mais de uma mulher é ameaçada de morte durante o filme. É aquela ideia de que se ela não pode ser dominada, precisa ser morta, para não matar a masculinidade frágil de um homem que não suporta vê-la usando o seu corpo e o seu prazer em liberdade. Como muito bem retratado no filme, é enlouquecedor para alguns homens, pensar na mulher, que ele se acha dono, indo ter prazer com outros homens.
Entretanto, apesar de toda essa retratação da estrutura monogâmica, é muito prazeroso ver Bella Baxter não se deixar levar por toda essa pressão social que cai em cima dela. Ela continua sendo ela mesma e fazendo o que tem vontade, sem sentir culpa, porque ela ainda nem aprendeu o que isso significa.
E agora, nesse contexto político em que estamos, se queremos continuar a ter a nossa liberdade para estarmos à vontade com o nosso corpo e sexualidade, só podemos lutar como Bella Baxter, voltando os nossos olhares para nós mesmas e para o que queremos nas nossas vidas. Chegou o momento de nos despirmos das nossas culpas e fantasmas que nos assombram.
Que possamos mergulhar no nosso vazio existencial e buscar a Bella Baxter que existe em nós, porque acabamos de entrar num momento sombrio em Portugal, em que a extrema-direita cresce de forma alarmante. Os ideais fascistas, preconceituosos e tradicionais de uma sociedade são representados pelos que foram eleitos. Adentramos num momento histórico muito difícil e precisaremos lutar para manter os nossos direitos de sermos mulheres autónomas, porque infelizmente esse governo que está por vir só acredita que nós temos funções muito específicas na nossa sociedade: sendo domésticas, recatadas e reprodutoras.
O momento é de resgatarmos o 25 de Abril e reunirmos todas as nossas forças para lutar contra o que está por vir.